A leitura é uma ferramenta poderosa que nos permite ir além da imaginação, conhecer novos cenários e culturas, adentrar a vida dos personagens e nos aventurar pelas infinitas possibilidades que ela oferece.
Ao longo dos anos, confesso que tenho lido menos livros e observado mais. É claro que você, caro leitor, pode ler o mesmo livro que eu e ter percepções completamente diferentes — e isso também é importante. Afinal, cada leitor carrega consigo o próprio horizonte.
Desse modo, para além das resenhas disponíveis em nosso canal, tomei a liberdade de trazer algumas reflexões sobre duas personagens que me impactaram profundamente. Sugiro que você só continue a leitura deste artigo se já tiver lido as obras mencionadas abaixo.
Deixo claro que tudo o que foi exposto aqui é fruto da minha experiência de leitura e não representa uma verdade absoluta sobre os livros em questão.
1. Em agosto nos vemos, de Gabriel García Márquez
Uma leitura que permanece após o fim
Vamos começar pelo último livro de Gabriel García Márquez que, somente algum tempo depois de lido, me fez refletir sobre a experiência de leitura. Embora seja uma coletânea de contos protagonizados por Ana Magdalena Bach, tem uma leitura fluida e é bem escrito.
O enredo nos apresenta uma mulher madura que recebe possíveis convites amorosos, uma vez por ano, quando vai até uma ilha caribenha visitar o túmulo da mãe. Ao retornar, age como se nada tivesse acontecido.
Ana Magdalena era também uma exímia leitora; casou-se virgem, o que nos faz intuir que seu marido poderia ter sido o único homem em sua vida. No decorrer das páginas, ela é impulsionada pelo convite de uma taça de gim que a leva para a cama com um desconhecido.
O peso do silêncio e a ausência de escuta
A questão é que, ao retornar, ela não deseja terminar seu longo casamento, mas continua se culpabilizando pelo ocorrido. Ela não tem sequer uma amiga para quem contar o que aconteceu. Evidentemente, não vamos explorar os motivos do adultério, mas destacar que uma mulher — aqui idealizada por um homem — se martiriza com um segredo que a atormentará pelo resto dos seus dias.
Talvez o conflito dessa personagem pudesse ser resolvido com uma conversa corajosa com o marido (que, nas entrelinhas, também é acusado de uma possível traição), ou, ao menos, se ela tivesse alguém com quem compartilhar seus segredos — uma pessoa de confiança, que não a julgasse por seus atos, especialmente considerando o quanto ela mesma já se atormenta com tudo que acontece após o primeiro episódio, com uma nota deixada entre as páginas de um livro.
A importância da escuta — e dos livros
Enfim, acredito que a presença de mais uma personagem nessa história poderia ter ajudado nossa querida Ana Magdalena Bach, mas, infelizmente, não tivemos tempo para isso. Os livros são nossos melhores amigos, mas em algumas situações, precisamos conversar com alguém. Ainda assim, sou profundamente grata a Gabriel García Márquez por essa leitura.
2. Madame Bovary, de Gustave Flaubert
Quando os livros abrem portas
No caso de Emma Bovary, eles lhe abriram a porta para a sociedade burguesa.
Logo no início dessa narrativa, temos Emma como uma moça ideal para o casamento, pois havia recebido uma boa educação: sabia dançar, aprendera geografia, desenho, a fazer tapeçarias e a tocar piano.
Por ser uma bela mulher, logo despertou a atenção de Charles Bovary, que, enquanto prestava atendimento ao pai dela, acabou se apaixonando pela jovem donzela. Mas Emma tinha muitas ambições, alimentadas também pelas páginas dos romances que lia. Na primeira oportunidade de se casar e escapar da realidade em que vivia, aceitou Bovary como marido sem pensar duas vezes.
O tédio burguês e a influência dos romances
O consumismo que acompanha Emma ao longo da história é incentivado tanto pelo comerciante que, vez ou outra, bate à sua porta para encantá-la com tecidos, objetos e tudo o que inflava seu ego, quanto pelos próprios livros que lia. Como burguesa, ela passava os dias sem ter o que fazer, esperando Charles para acompanhá-lo nas refeições. Vez ou outra, tinha a companhia da criada, que pouco falava.
Com o passar do tempo, viu na maternidade uma possível realização — a mesma que buscara no casamento e não havia encontrado. E, mais uma vez, se decepcionou, voltando-se para a conturbada realidade das páginas dos livros, onde idealizava uma vida perfeita.
De amantes, frustrações e a falta de diálogo
Ao longo da narrativa, ela conhece seus amantes, que passam a amenizar o tédio da monotonia. Ao contrário do marido, esses homens são confiantes e têm apreço pelas mesmas coisas que ela, o que facilita o envolvimento emocional.
Então temos Emma, mais uma vez, mergulhada em uma busca incessante por realização — a mesma que lia nos romances que, inclusive, sua sogra orientou Charles a proibir, a fim de evitar a alienação da esposa.
O fato é que Emma passa toda a narrativa em busca de uma vida idealizada, que só encontra nos romances (sabe-se lá o que ela estava lendo naquela época), enquanto poderia tentar conversar com alguém que não fosse um potencial parceiro romântico.
Emma e o silêncio das mulheres
Nesse ponto, talvez a arrogância intelectual de Emma a impedisse de se abrir com outras mulheres, por acreditar que elas não estariam à altura de uma “boa conversa”, à qual estaria, evidentemente, exposta, pois estaria fadada às condenações de sua época.
De todo modo, Emma nos ensina que é importante, para além dos livros, ter alguém com quem conversar — ainda mais em momentos difíceis como os que ela enfrenta. Porque, convenhamos, essa mulher sofreu até para morrer!
Conclusão
Concluo lembrando que Ana Magdalena Bach e Emma Bovary são apenas dois exemplos fictícios que revelam algo muito real: para além das leituras que nos habitam, é preciso haver espaço para o diálogo com o outro — aquele que escuta, acolhe e nos ajuda a organizar os pensamentos que, muitas vezes, se perdem em silêncio.
Não trago aqui uma crítica, mas uma análise com viés filosófico e emocional sobre a importância da escuta e do encontro humano. Os livros, sim, nos ensinam muito, são fundamentais para o desenvolvimento de diversas habilidades. Mas é essencial estarmos atentos à qualidade das obras que escolhemos — e também aos efeitos que elas causam em nós. Às vezes, sem perceber, podemos estar sofrendo de um certo “bovarismo” contemporâneo.
Neste canal, onde tanto reforço que a leitura tem o poder de nos transformar, quero deixar um lembrete importante:
Se a literatura não nos torna mais humanos, ela perde o seu verdadeiro sentido.