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Quantas histórias guardam os livros antigos?

Até um certo tempo atrás, minha preferência era apenas por livros novos. Detestava qualquer tipo de marcação ou rasura que pudesse violar sua preciosidade. Acreditava que tais sinais representassem uma espécie de maltrato à obra.

Mas, felizmente, algumas coisas acabam mudando sem que percebamos. Talvez tenha sido em um momento em que comecei a entender que as marcações nos ajudam a registrar, em algum lugar dentro de nós, aquilo que não podemos esquecer. Bem, começou assim: com um post-it, depois com um marcador e, então, com anotações nas margens.

Contudo, o que mais me trouxe boas memórias e, quem sabe, uma relação mais íntima com o universo literário foi o contato com os livros antigos. Foi através de uma visita despretensiosa a um sebo local — uma paixão à primeira vista.

Foi assim que encontrei livros que passaram por outras mãos antes de alcançarem as minhas. Páginas que sobreviveram às intempéries do tempo, amareladas, manchadas. Livros que ocuparam outras estantes, acompanharam passos que não foram os meus, repousaram em mãos que os estudaram cuidadosamente — de uma forma tão meticulosa que me permitiu encontrar sinais desse relacionamento a cada página lida.

Quantas histórias guardam os livros antigos?

A depender de quem foi o tutor, eu diria que muitas. 

Imagine um livro que pertenceu ao seu pai, por exemplo. Ele poderia estar lendo na sala de casa, num dia de inverno, fazendo anotações a lápis sobre algo que o marcou em determinado capítulo. Uma pequena caneca de café era sua companheira e, antes que pudesse desfrutá-la, ouviu a voz de sua esposa no outro cômodo da casa e foi atendê-la. Quando retornou ao seu espaço sagrado, desta vez munido de uma carta inesperada, buscou sua caneca com a mão trêmula e, depois de beber um gole, acabou pousando-a de forma inadequada sobre a mesa, espalhando o café. Imediatamente tentou salvar o livro, mas a mancha já emoldurava parte das páginas que ele estava lendo. O livro não se perdeu, pois mais tarde, as páginas secaram. Em algum trecho, você ainda poderia perceber as nuances deixadas pelo café. Entre suas páginas, quem sabe, encontraria a carta misteriosa que ele havia recebido.

Anos depois, esse mesmo livro poderia ser encontrado em sua estante. Em algum momento, você o leria e teria uma experiência própria daquele enredo. Só então perceberia as anotações feitas pelo antigo tutor. Se fôssemos analisar, veríamos que há muitas histórias entrelaçadas em apenas uma: a do livro.

Evidentemente, essa história aconteceu apenas no meu imaginário, mas nos faz pensar que os livros antigos — aqueles que repousam em milhares de bibliotecas, em estantes inacessíveis — carregam histórias que talvez nunca tenhamos a oportunidade de conhecer. Mas, quando aprendemos a olhar para isso e a perceber que um único livro pode conter muitas outras histórias além daquela que veio contar, entendemos que a literatura possui essa misteriosa vantagem de continuar encantando além do tempo.

Ela está na memória que nos conecta uns aos outros. Na possibilidade de que aquele livro que hoje está em suas mãos possa ser compartilhado com outras pessoas. No valor simbólico de um exemplar que pertenceu a alguém importante e que guarda uma parte da sua história.

Acredito que os livros antigos têm esse poder pois, quanto mais o tempo passa, mais histórias têm para contar. Afinal, nunca é somente sobre aquelas histórias — mas sobre as que podemos criar a partir daquilo que nos foi contado.

Talvez por isso, devêssemos nos contentar em ser apenas guardiões de memórias que um dia serão redescobertas.

Quão mágico é imaginar que, daqui a uma década, alguém desconhecido encontre um livro que já passou por suas mãos?

E que essa também é uma história que merece ser compartilhada?

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