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“Cidadão Kane” e a música “Rosebud”

Vocês já viram o filme “Cidadão Kane” (Citizen Kane)? Trata-se de uma produção cinematográfica de 1941 e tida por muitas pessoas até hoje como a melhor de todos os tempos. O roteiro fala sobre a história de Charles Foster Kane, um personagem criado a partir da trajetória do magnata da imprensa William Randolph Hearst.

Agora, peço perdão, mas terei de dar vários spoilers inevitáveis, de modo a construir o meu posterior raciocínio. O enredo tem início com os últimos suspiros de Kane, quando este pronuncia, finalmente, a palavra “Rosebud”. Com isso, o jornalista Jerry Thompson é incumbido de descobrir o sentido desse termo. Então, entrevista pessoas próximas ao falecido e investiga a sua biografia em seus pormenores. Percebe, assim, que ninguém se importava, de verdade, com Charles, que, como costuma acontecer, “comprava” a atenção e a admiração alheias por meio de sua fortuna e de sua influência.

No fim, mesmo depois de realizar uma minuciosa varredura, Thompson não chega à conclusão alguma. Só após, por meio de uma imagem, o público vem a saber que “Rosebud” era o nome do trenó com o qual Kane brincava quando era uma criança pobre. Ou seja, esse foi definitivamente o único objeto que realmente teve algum valor para ele, durante a única época da sua existência em que fora sinceramente feliz.

Apesar de o filme trazer uma lição valiosa e ainda ser um tremendo sucesso de crítica, na época ele prejudicou a carreira do seu diretor Orson Welles, que, como ator, também interpretou o papel principal. Isso porque William Randolph Hearst era contemporâneo à obra e acabou reconhecendo as referências à sua história de vida. Desse modo, não ficou nada contente com o que observou e fez o possível para atrapalhar o filme e os envolvidos nele. Em meio a essa situação, as exibições nos cinemas não pagaram os custos da produção e “Cidadão Kane” somente recebeu, de verdade, alguma atenção quase duas décadas depois.

Vamos agora à segunda etapa deste texto. Contextualizei acima o título e a palavra em questão para que possamos compreender bem aquilo que é precisamente o meu foco aqui: a análise da música “Rosebud”, da banda carioca Jason, fundada ainda nos anos 90. Esse grupo, um dos expoentes brasileiros do estilo musical conhecido como hardcore, sempre compôs canções muito criativas, críticas, irônicas, proporcionando uma valiosa aula de sociologia, psicologia e filosofia a cada disco que lança. E as menções ao cinema não param em “Rosebud”, pois o próprio nome da banda é uma alusão ao serial killer Jason Voorhees, da série de filmes “Sexta-Feira 13”.

Uma das faixas do disco “Eu Sou Quase Fã De Mim Mesmo”, lançado em 2000 pela Tamborete, “Rosebud” não é uma das músicas mais valorizadas da banda, provavelmente por sua densidade, pela exigência de conhecimentos prévios e por conta de sua melodia quase psicótica, combinando com a perturbação mental expressa pelo eu lírico. Mas eu a considero verdadeiramente uma obra-prima, inclusive atentando aos fatores supracitados.

A letra começa nos apresentando a um indivíduo frustrado, que busca respostas para a insatisfação com a sua vida atual naquilo que experimentou durante a infância. A partir daí, ele faz um contraponto entre as inocentes batalhas imaginárias da fase infantil e as atrozes batalhas reais da fase madura. Ainda, reflete a respeito do fato de que, desde criança, não se enxergava como um herói, mas que, hoje, passa a perceber que tudo dá certo para os protagonistas (“Por que lembrar que a vida era só brincar? […] Será que hoje eu aprendi que os heróis sempre terminam bem?”).

Em seguida, há o refrão, cujos versos nos sugerem que o eu lírico não realizou nada daquilo que idealizara enquanto pequeno, e teme, também, como Charles Foster Kane, recordar-se da infância como o único momento positivo da sua existência (“Perco tudo que eu já sonhei. Ser o que eu não podia ser. Não quero dizer quando morrer: Rosebud!”).

Depois, pergunta-se se não deveria se esquecer dos seus brinquedos de antigamente, possivelmente para tentar parar de sofrer, de se angustiar. E lança uma bomba: “Fui sempre o melhor e não posso mais ser”. Ou seja, na infância, na inocência, nos devaneios, podemos ser exatamente quem quisermos ser. No entanto, quando acordamos para a vida, os nossos sonhos tornam-se meras utopias – e é nesse âmbito que iniciam-se as nossas frustrações.

Na sequência, testemunhamos um personagem falível, que procura viver à sua maneira. Porém, se antigamente, nas ocasiões em que desobedecia, não sofria punições tão severas, atualmente precisa se render às regras e às leis, porque as consequências dos seus atos são mais sérias. Agora, sim, ele deve pagar – por tudo, aliás. Embora já nem ligue mais, tendo em vista que fracassou com o seu eu criança (“Chorar e desobedecer – hoje eu preciso me render. Tanto faz, porque eu já sei o que NÃO vou ser quando crescer…”).

Por fim, considero muito emblemático o verso escolhido para fechar a composição: “Eu queria ter um ferrorama que não andasse em círculos”. Aqui, constatamos que o seu ferrorama não o leva a lugar algum. Isto é, estabelecendo uma analogia com o que é relatado pelo eu lírico, a sua vida não engrena, sempre retorna ao mesmo ponto, nada o leva a seguir adiante.

Em resumo, a maioria dos indivíduos embarca na imaginação fértil da infância, em ocasiões em que pode brincar de ser qualquer coisa, brincar de sonhar, numa criatividade fomentada pelos brinquedos, pelo colorido, pela inocência, pelas incertezas sobre a vida e o futuro, almejando uma existência próspera e repleta de possibilidades para a sua fase adulta. 

Contudo, quando o futuro se torna o presente, a realidade, a rotina, a solidão e o desalento da vida desabam em cima de cada um, esmagando, por vezes, os desejos e as ambições. Alguns vivem uma vida frustrada, previsível e invisível; outros conseguem, como Charles Foster Kane, concretizar muitos dos seus sonhos, quase sempre a qualquer custo, e se veem mergulhados em uma vida vazia, estampando uma felicidade de mentira, envoltos em quinquilharias caras que não preenchem o seu buraco negro existencial. Poucos são, afinal, os que estão prontos de verdade, encaram a vida e os seus obstáculos de frente, e transformam dificuldades em oportunidades.

E você… também tem o seu “Rosebud”? Também falhou com a criança que já fora, ou virou o herói da própria trajetória?

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